Está mais caro reciclar do que produzir produtos a partir de matéria-prima virgem, segundo o Setor dos Aparistas de papel
Um dos segmentos mais importantes para a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS) e a preservação do meio ambiente no Brasil, os aparistas de papel, que reciclam mensalmente milhares de toneladas de material recolhido das ruas pelos catadores e entregue também pelo comércio varejista, atacadistas e indústria, sofreram em 2023 uma das maiores crises de sua história.
Com preços em queda e demanda retraída de grandes produtoras de papéis para embalagens, principalmente os maiores, as 55 empresas associadas à Associação Nacional dos Aparistas de Papel (Anap), além das centenas de pequenas e médias empresas, buscam alternativas de sobrevivência diante de um mercado saturado, custos altos para exportação e quase sem apoio do governo federal.
Uma das grandes produtoras de embalagens do País, a maior consumidora de papel, parou de comprar material reciclado desde o início do ano e tem utilizado na produção quase exclusivamente celulose virgem, de suas próprias áreas de reflorestamento, que somam 500 mil hectares. No Brasil, as estimativas são de que pouco menos de mil empresas de aparas atuam de forma regular, a maioria pequenas e médias.
No ano passado, conforme anuário divulgado pela Anap, em uma amostra composta por 67 empresas, foram coletados 1,6 milhão de toneladas de papéis, que, de outra forma, teriam sido descartadas em lixões, poluindo o meio ambiente. O volume recuperado por essas empresas representou 33% de todo material coletado. O total coletado em 2022, conforme dados levantados pela Anap, foi de 4,9 milhões de toneladas. O setor gera cerca de 40 mil empregos diretos. As principais fontes de coleta são ferros velhos (32%), comércio (26%), gráficas e cartonagens (23%) e cooperativas e catadores (19%).
“Este ano foi massacrante para o setor. O preço está muito ruim, cerca de 60% do valor necessário para cobrir os custos, que não param de subir, os produtores de papelão estão sufocados com excesso de matéria-prima e as exportações de aparas, que poderiam ser uma opção diante de um mercado interno ruim, são inviáveis para a maioria, já que os altos custos do transporte até os portos não compensam o que é pago no exterior”, afirma Marcello Bellacosa, presidente do conselho da Anap, que teve recentemente sua diretoria toda renovada.
Além de presidente da ANAP, Bellacosa é CEO da Scrap, outra grande aparista de papel, no mercado desde 1971. Ele também reconhece a distorção do mercado com a ausência de grandes produtoras de embalagens, mas busca pulverizar as vendas como forma de garantir os ganhos em sua operação. “Não dependemos de ninguém, preferimos trabalhar com fábricas menores de embalagens”, afirma. A Scrap, com sede em Osasco, 130 funcionários e frota própria de 38 caminhões para coletas e entregas, destina à reciclagem 10 mil toneladas por mês de papel, cerca de 500 toneladas por dia.
Conforme ele, mesmo com a PNRS, que foi regulamentada em 2020, não existe a obrigatoriedade de usar papel reciclado pelas grandes produtoras. “Uma das nossas brigas é que seja criada uma certificação que comprove o uso, um pacto no setor, mostrando a importância da reciclagem para o País e meio ambiente”, diz Bellacosa.
Sem essa providência, que poderia, em sua opinião, ser uma pressão a mais para a utilização de papel reciclado, os produtores de embalagens ficam em posição confortável para só comprar o que quiserem dos aparistas.
Gabriel Vicchiatti, CEO da Vicchiatti Ambiental e conselheiro da Anap, lembra que, entre os materiais recicláveis, o papel é atualmente um dos que mais têm sido afetados pela falta de estímulo governamental, como a ausência de linhas de financiamento mais acessíveis para aquisição de equipamentos, para um setor essencial no combate à poluição ambiental, e uma política tributária que penaliza o segmento.
Assim como outros setores reunidos no Instituto Nacional da Reciclagem (Inesfa) - empresas que comercializam sucata de ferro e aço, alumínio, plástico, cobre e vidro --, os aparistas de papel aguardam a aprovação na Câmara dos Deputados do Projeto de Lei 4.035, de 2021, de autoria do deputado federal Vinicius Carvalho (Republicanos-SP), que visa restabelecer a isenção de PIS e Cofins nas vendas de materiais recicláveis às grandes indústrias. O PL, argumentam os recicladores, pode também solucionar a distorção criada pela decisão do STF, que julgou inconstitucional, em 2021, benefício existente na Lei nº 11.196/2005 (Lei do Bem), que previa a isenção de PIS/Cofins nas vendas de recicláveis à indústria de transformação.
Fábio Suetugui, gerente da Repapel, uma das maiores aparistas de papel do País, com sede em Guarulhos e 38 de atuação, que recicla cerca de 5 mil toneladas por mês, argumenta que ainda está conseguindo operar, apesar das dificuldades, em função de uma carteira de clientes antigos e fiéis (fabricantes de embalagens), como a Trombini, Penha e Ibema (um dos braços da Suzano), e alguma exportação a países como Índia, México, além de Europa e África, mesmo com os preços externos pouco estimulantes. Mas, afirma, a ausência no mercado da maior produtora de embalagens, “sem dúvida, traz dificuldades às empresas de reciclagem, principalmente as pequenas e médias, muitas já fechando as portas”. Além disso, diz Suetugui, as empresas que operam legalmente são prejudicadas pelos “atravessadores”, que não recolhem o ICMS. “Seria essencial ter nas rodovias federais as barreiras fiscais eletrônicas, como existem nos EUA, que identificam material transportado irregularmente”, diz.
Segundo Fábio Luigi Bellacosa, fundador da Scrap e um dos últimos presidentes da Anap, os preços obtidos na venda de aparas são hoje inferiores ao período prépandemia. “Enquanto isso, o custo não para de subir, como água, energia, pneu e caminhões e arames utilizados para amarrar os fardos”, diz. Para Fábio, esse quadro desmotiva a captação de papel na rua. Os catadores, mais de 1 milhão que dependem da atividade para sobreviver, preferem recolher materiais mais rentáveis na venda, como ferro, aço e latinhas de alumínio, e o papel acaba sendo destinado a lixões.
Atualmente, calcula, para ganhar R$ 10, os catadores precisam obter 100 quilos de papel nas ruas. O ex-presidente da Anap, que acompanha o mercado há várias décadas, lembra que a situação atual do setor se equipara a 1994, antes do Plano Real, com a inflação descontrolada. “O melhor momento da reciclagem foi em 2014, situação que se manteve estável nos anos seguintes, até 2018”, diz. A reforma tributária, segundo Fábio Bellacosa, pode trazer algum benefício ao setor, com o fim de impostos como PIS, Cofins e ICMS. Mas no curto prazo, argumenta, o que pode trazer um alívio maior é a volta de compras de material reciclado pelas grandes produtoras e uma política do governo de mais estímulo à cadeia de reciclagem.
Jair Vitorino, da Capital Recicláveis, também afirma que a indústria de papel e papelão é maior responsável pela crise vivida pelo setor de reciclagem. “O problema é que duas indústrias papeleiras são responsáveis entre 35% e 40% do mercado. A maior delas, consumia 30 mil toneladas de material reciclado por mês e simplesmente parou de consumir aparas de papel na sua produção”, afirma. A solução, na opinião de Vitorino, está na manutenção da isenção tributária que incide sobre os recicladores e na criação de linhas de crédito para que os aparistas possam adquirir maquinário importado e otimizar a transformação das aparas conforme exigido pela indústria.
A CRR Centro de Reciclagem Rio, uma das maiores empresas do setor aparista do Brasil, com cerca de 25 mil toneladas de papel comercializadas mensalmente, diz que o Governo Federal precisa estimular a indústria por meio de incentivo fiscal que atenda a cadeia produtiva de papel e papelão. “O que existe é uma tributação excessiva. O aparista é taxado na compra do papel e na venda na venda do material para a indústria”, afirma Anice Torres, diretora da CRR e associada à ANAP. “Temos ainda o impacto social e ambiental do setor. O catador deixa de recolher o papelão, que tem um preço baixo de venda, e nós, aparistas, não temos margem para fazer o negócio girar, nem para investir nos equipamentos necessários. Com isso, a indústria prefere utilizar a celulose retirada de plantações de eucalipto no lugar de material reciclado”, finaliza.
Nesta batalha fiscal, a ANAP é uma das signatárias do Manifesto pela desoneração da cadeia da reciclagem na Reforma Tributária, documento encabeçado pelo INESFA – Instituto Nacional da Reciclagem, que pleiteia maiores incentivos para impulsionar os investimentos necessários ao incremento e fabricação de novos produtos com maior uso de matérias-primas secundárias.